quarta-feira, 14 de setembro de 2011

De verdade


(Sobre o documentário "Terra Deu, Terra Come".)
Seu Pedro é um velho matreiro. Ele jura que viu, ouviu e viveu histórias fantásticas em Quartel do Indaiá, distrito rural de Diamantina. E não se acanha em compartilhá-las conosco enquanto prepara o funeral de João Batista, o compadre que teria vivido 120 ou 180 anos, não se sabe bem.
Seu Pedro é um matuto. Vive no campo e não tem instrução formal. É dado a completar com imaginação as partes da história que a memória não quer (ou não sabe) narrar. Guarda lembranças da época em que, no riacho, enchia a mão de diamantes, “que nem canjicas”. E sabe coisas “de veras”.
Sabe bonitas cantorias meio cristãs, meio africanas. Sabe que as almas vagam entre nós porque é difícil entrar no Céu. Sabe como e por que Deus encarregou a morte de matar. Mas, principalmente, sabe como tratar e destratar com o diabo na noite de São João.
Dos 14 filhos de seu Pedro, os que vingaram sabem pouco ou nada disso. Muito provavelmente, nenhum deles cantará no velório do pai. Acostumados com o rádio, eles não demonstram interesse em aprender feitiçarias. Ao contrário, parecem constrangidos com a desinibição do homem diante da equipe de documentaristas vindos da cidade grande.
Mas seu Pedro não sabe que o destino anuncia para ele um fim parecido com o de outro célebre matuto: seu Ribeiro. O personagem de Graciliano Ramos, antes respeitado e admirado por saber contar às crianças histórias de santos, acabou infeliz e envergonhado quando chegou à vila o médico que não acreditava neles. Terminou dando a impressão de ter ficado com as pernas “debaixo de um automóvel” por não ter andado mais depressa.
As câmeras sabem disso, mas preferem deixar de lado as ideias preconcebidas que a gente da cidade grande traz. Registram compreensivamente a beleza que há naquela vida – porque há beleza em qualquer vida. Mais que isso, deixam-se enganar pelo ardil de seu Pedro.
É a opção recomendada pelas modernas escolas de cinema e, no caso, funciona muito bem. Mas, como qualquer escolha, tem um custo. Quem olha para o mundo só em busca de beleza acaba justificando as coisas como são. E isso pode ser cruel e condescendente.
O documentário é bom, o que é um diabo. Faz esquecer que, quando os letreiros sobem, a vida continua. Para alguns, nos charmosos cineclubes das grandes cidades. Para seu Pedro, no abandono de Quartel de Indaiá. Pura matreirice, afinal.